Se você pudesse contar sua história através do seu guarda-roupa, quais peças falariam por você? Por mais estranha que pareça essa pergunta, você já parou para observar como nossas escolhas falam muito sobre nós? Seja para esconder ou revelar algo, a roupa que escolhemos vestir tem sempre alguma intenção e é sobre esse delicioso poder de escolha que gostaria de falar.
Quem nunca se pegou namorando uma vitrine ou sonhando com o sapato da revista? No auge dos meus 21 anos, muito do que me movia a gostar de moda era justamente o impacto que uma simples peça de roupa poderia exercer sem ao menos dizer uma palavra. E foi assim que essa paixão me empurrou para Londrina, onde fui estudar estilismo em moda.
Durante 4 anos intensos, vivi entre tecidos, cortes e metodologias que estudavam o design a fundo. Após 2 meses de formada me vi tendo que me dar conta de algo simples, mas que nunca havia feito parte da minha vida, seja em sala de aula ou dentro das inúmeras bibliografias lidas até então – a completa invisibilidade com que os corpos com deficiência são tratados pela moda.
Até então, essa realidade era bem distante da minha. Com meus 1,74 de altura e pesando 54 quilos, eu nunca havia parado para pensar e nem me importar com outros corpos. A verdade é que eu estava bem confortável sendo parte do padrão que ditava as regras.
Pois bem, do corpo padrão eu fui parar no extremo oposto, aquele cuja forma é a mais marginalizada pela moda. Eu havia ficado paraplégica e, de repente, todas aquelas inúmeras referências desapareceram literalmente do dia para a noite.
Lembro da minha volta para casa e da dolorosa despedida do meu guarda-roupa ao perceber que nada daquilo me servia mais.
De uma hora pra outra, escolher uma roupa se tornara um verdadeiro massacre, não só por elas não mais me servirem como antes, mas também porque a estrutura das lojas não estava preparada para me atender. Mais do que isso, eu perdi também as minhas fontes de inspiração. Aquelas lindas imagens de revista não mais me representavam, nem me motivavam a tentar encontrar algo que fizesse sentido pra mim. E foi nessa que eu cheguei ao ponto de acreditar que moda não fosse mais para mim.
Como boa geminiana, a inquietude de ideias permeia minha cabecinha e, em 2014, após visitar uma exposição de moda inclusiva no Canadá, que o ascendente em Leão deu seu grito de liberdade e resolveu tomar posse daquele território. Sim, eu decidi assumir o meu corpo e ingressar nesse mar de desconstrução que é a moda inclusiva.
Entre erros e acertos, comecei a entender a moda como um meio de comunicação, e, no caso de uma pessoa com deficiência, ela exerce um poder ainda maior, o de abrir espaços onde o foco é a pessoa em si e não apenas a sua condição como deficiente. Foi mágico perceber que, quando comecei a entender quais peças, modelagens e cores funcionavam melhor para mim, as pessoas ao meu redor, ao invés de me perguntarem o que havia acontecido comigo, começaram a perguntar “onde você comprou essa calça?” Percebe a potência de tudo isso?
Após anos acreditando que minha deficiência chegaria sempre antes de mim, eu finalmente ganhava voz.
Eu lembro exatamente da primeira vez em que isso aconteceu. Eu havia acabado de terminar meu curso em Consultoria de Imagem e resolvi aplicar algumas técnicas na escolha do meu look. Chegando ao destino peguei o elevador e, lógico, rolou aquele momento de tensão onde você fica no meio do elevador sendo alvo dos mais diversos olhares. Porém, para a minha surpresa, ao sair daquela caixinha onde habita o constrangimento, escutei da senhora que tanto me olhava: “adorei a forma como você coordenou as cores do seu look”. Foi ali que tive a certeza do caminho que gostaria de trilhar, compartilhando esse desejo de liberdade com tantos outros corpos que desejam apenas ser quem são.
Hoje, após 2 anos de muito trabalho e aprendizado, o projeto que idealizei – Meu Corpo é Real – vem plantando sementes e abrindo portas para que futuramente algo muito simples possa acontecer: a possibilidade de todas as pessoas terem o mesmo direito de escolha. Seja nas modelagens ou no acesso à informação, vivemos em pleno processo de reeducação de nossas crenças e olhares.
Pensar nessa democratização dos corpos pela moda é de suma importância para que as crianças de hoje possam, no futuro, se olhar no espelho sem medo de se reconhecerem em sua diversidade.
Michele Simões tem 36 anos, é estilista e consultora de Imagem. Como idealizadora do Meu Corpo é Real ela trabalha para promover uma moda que age, comunica e quebra estereótipos. Segundo ela, romper com crenças limitantes é o que a move: “Por isso me reinvento a cada não pode, não dá e não tem pra você.” Seu novo hobby? Tocar bateria.